A morte de René Guénon chamou-nos a atenção sobre uma obra das mais significativas de nossos dias, pois se constitui fora da mentalidade moderna e do mundo intelectual de nosso tempo. Guénon soube livrar-se dos prejuízos de nossos dias e elaborou sua obra com o inflexível rigor da solidão. Ele tocou nos problemas da civilização técnica e das ameaças que implica.
Uma das primeiras verdades que a obra de Guénon traz é a reabilitação do conhecimento simbólico frente ao conhecimento científico. Para um homem formado na química ou na astronomia é absurdo voltar a astrologia ou a alquimia. Para o mesmo todo o espírito moderno é um desvio e, há mais verdades essenciais na astrologia, com todas suas infantilidades, que na astronomia com sua técnica.
Toda a ciência pode aumentar as dimensões da jaula material onde o homem está; mas nunca pode libertá-lo dessa jaula. A intuição intelectual que podemos ter a partir das realidades do mundo material nos leva a captar uma realidade que as supera e que tem um valor mais vital.
Entenda-se o que queremos dizer: Guénon não quer a volta a astrologia ou alquimia em sua forma vulgar de pseudociência. Trata-se de entender que os metais e astros nos interessam mais pelo seu significado que por sua composição ou uso que deles possamos fazer. Podemos considerar uma esmeralda como um bem comercializável; é o que faz o joalheiro e comerciante. Podemos considerá-la do ponto de vista de suas propriedades materiais; é o que faz o químico. Mas o que de mais real tem a esmeralda é sua cor viva e dureza, e isso é o que o alquimista capta.
A astronomia não faz mais que informar sobre a mecânica dos astros; fazer isso significa ficar na superfície das coisas. O mundo estelar está prenhe de sentido. São estes sentidos e significados que cabe descobrir; Guénon compreendeu que os movimentos estelares mais que arquétipos dos movimentos terrestres, são sinais de realidades de outra ordem. Mircea Eliade já observava que os povos antigos viam no céu visível sinais de uma hierofania através da qual se manifesta o mundo espiritual. Isso é o oposto de uma astrologia vulgar que crê estar a existência humana condicionada pelos astros.
Submete a mesma crítica a geometria e a matemática: as figuras geométricas não interessam pelas relações numéricas, mas pelo valor qualitativo da figuração simbólica. Junto a ciência dos números se acha a simbólica dos números: não sem razão o 7 e o 40 desempenham um papel fundante na simbólica bíblica, constituindo uma verdadeira linguagem. E esta linguagem não é convencional, mas baseada na natureza das coisas, o que nos conduz a uma conclusão: as tradições por mais diversas que sejam nos apresentam símbolos idênticos ou semelhantes. A que atribuir esta permanência? Não é fácil admitir que isso se deva a uma transmissão de uma tradição original como quer Guénon. É mais fácil concluir, com Mircea Eliade, que estes símbolos se fundam na natureza mesma das coisas e, que os homens dão idênticos significados aos mesmos objetos.
Guenon faz entrar a simbólica cristã na simbólica tradicional. Relaciona a simbólica da cruz na Índia e no cristianismo. Observa que o número dos doze apóstolos é um símbolo que remete ao Zodíaco de doze constelações. A veste branca do Papa atesta o valor do branco em todas as religiões. Existem de fato analogias indubitáveis. Analogias que levam Guénon a ver no cristianismo nada mais que uma das formas da tradição primordial: ele se interessa pelo cristianismo pelo que tem de comum com outras tradições. E desde aqui não é possível mais segui-lo: o cristianismo reconhece uma simbólica natural que se acha relacionada com a religião cósmica, quer dizer, com essa revelação que Deus faz aos homens através do mundo visível. O cristianismo é muito diferente disso: é a irrupção de Deus na história, um fato novo. A cruz nele não tem mero valor simbólico mas que Cristo foi imolado nela. Como o patíbulo onde Cristo foi imolado tinha forma de cruz a liturgia da Igreja carregou-a de todo simbolismo natural para significar que ela indicava as 4 dimensões e o eixo do mundo e que a redenção tem valor universal. Porém estes simbolismos tem importância secundária frente aos fatos históricos. E é esta importância do cristianismo como novidade absoluta que desconhece Guénon.
Nada tem isso de estranho já que a condenação de toda a história, forma parte essencial de seu pensamento. Experimentamos uma grande satisfação quando vemos Guénon condenar, com uma violência que não tem igual, as ideologias modernas do progresso, da evolução e do historicismo. Estamos de acordo com ele em pensar que é absurdo crer que o desenvolvimento da ciência possa levar a uma transformação qualitativa da humanidade. Guénon porém vai mais longe e vê decadência em tudo. Decadência que se acentua a partir do século XVI. A ciência enquanto tal, e não apenas o uso culpável que dela se possa fazer, não há de arrastar o mundo a pior das catástrofes, na medida em que ganha importância maior que a da Sabedoria?
É preciso reconhecer o alcance da crítica tão valente que Guénon faz dos prejuízos nefastos do mundo moderno. Pelo fato de esperar uma salvação da ciência o homem se aliena dos únicos verdadeiros meios de salvação. Os que alimentam essa ilusão, chamam-se marxistas e liberais, são os verdadeiros responsáveis pela miséria do mundo moderno. Não há dúvida que as noções de progresso científico se acham desprovidas de todo sentido espiritual. Não há dúvida que a hipertrofia da ciência materialista e moderna afasta o homem moderno da intuição intelectual dos valores metafísicos. Não há dúvida que no plano natural, a passagem do tempo não traz ao homem nada de essencial e que só os princípios metafísicos constituem o essencial e estes princípios são imutáveis.
Não há nada de essencial que possa ser novo na ordem natural. Porém não sucede o mesmo no plano cristão. Pois neste nos encontramos na presença de fatos que mudam qualitativamente a existência humana e que constituem por isso uma novidade absoluta. Basta ler São Paulo para ver com que freqüência se repetem as expressões de “nova criação” e “homem novo”. Existem portanto elementos que não possuía a tradição anterior que mostra uma promoção espiritual, que corresponde ao passo que se dá no conhecimento de Deus e da revelação da sua via íntima por Jesus Cristo. Em efeito só no cristianismo se dá a História. Isto foi o que Guénon não viu: para ele o cristianismo não é realidade única. A prova disso é que ele, ao fim da vida foi parar no Islã.
Isto nos conduz ao último aspecto de seu pensamento, o que se refere às relações entre ciência, sabedoria e fé. Uma vez mais chama a atenção da parte positiva de seu pensamento: contra o relativismo e pragmatismo ele restaura o valor do pensamento especulativo. A realidade suprema é o mundo das idéias eternas cujo reflexo são as coisas sensíveis. A atividade mais elevada do homem é a intuição das essências. Só o conhecimento destas idéias eternas pode nos fazer organizar as coisas com sabedoria. Quem possui este conhecimento possui a autoridade espiritual. Guénon restitui a seu pleno valor a concepção hierárquica da sociedade que choca com o dogma moderno da democracia e do voto universal. A autoridade espiritual se compõe de quem possui a Tradição e subsiste de forma máxima no “rei do mundo” que é seu arquétipo ideal. Essa autoridade se encarna visivelmente em certos personagens. O Papa representa para Guénon uma destas autoridades. Ele defende esse aspecto do catolicismo e vê, no protestantismo, nada mais que uma perversão do autêntico cristianismo.
Agora bem: de que tradição são depositárias as autoridades espirituais? Só da tradição dos princípios intelectuais. Estes princípios são, sobretudo, os da filosofia da Índia e do Vedanta ao que Guénon consagra sua primeira obra. Nela fala de verdade suprema. Filosoficamente isso é inquietante. Pois a filosofia da Índia nos deixa na incerteza de dados como a transcendência de Deus, da imortalidade da alma, da criação. O que choca ainda mais é que a verdade suprema é a verdade filosófica. As grandes religiões monoteísticas seriam apenas um compromisso entre as verdades filosóficas e as necessidades afetivas dos homens que exige que eles tenham misticismos e liturgias. É esta inversão da relação que une metafísica e revelação cristã que constitui o erro capital de Guénon.
Aqui é que se insere o problema de sua obra que é o esoterismo. Por esoterismo podemos entender muitas coisas: podemos considerar no interior de uma religião existem coisas inteiramente distintas. Por uma parte se pode considerar que no interior de uma religião existem coisas que não podem ser comunicadas, sem faltar com a prudência, aos principiantes. Tal era a explicação do livro de Cantares no Judaísmo; tal é a via mística no cristianismo. Porém em um ou outro caso não se trata de doutrinas diferentes senão de aprofundamento na mesma doutrina. Para São Paulo a gnose nada mais é que aprofundar a fé. Nada é mais contrário ao cristianismo que a noção de uma fé de primeira e de segunda categoria. O batismo é que constitui a iniciação. O batizado não precisará receber uma segunda iniciação para conhecer um sentido secreto dos ritos e dos dogmas.
Porém o esoterismo tem um segundo sentido, que é o assumido por Guénon: consiste em dizer que além da diversidade das religiões, existe uma doutrina oculta, que é comum e cujo saber pertence apenas aos iniciados. Existe uma doutrina secreta diferente da doutrina pública ou exotérica. E esta doutrina não é que ensina o catecismo. É outra doutrina cuja transcrição simbólica são os dogmas, mas é preciso ser iniciado para saber seu sentido oculto. Para Guénon há uma oposição entre religião e sabedoria que seria a doutrina oculta. Para ele só tal doutrina nos pode dar a salvação e não a figura de Cristo.
A obra de Guénon é, a um tempo, importante e decepcionante. Nos atrai por que denuncia os erros modernos; mas se passamos ao pensamento positivo de Guénon nos deparamos com algo incompatível com o cristianismo pois nega a essência da fé cristã: o caráter privilegiado da ressurreição de Jesus Cristo.
#Cardeal Jean Danielou
O Mistério da História, Capítulo IX.
Tradução: Rafael Queiroz
Tradução: Rafael Queiroz
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